A Catedral, o bazar e a socialite
Estava eu trocando as costumeiras ideias com os amigos do fediverso, quando chegou a pergunta: “você já leu The Catedral and the Bazaar?” Não, nunca tinha ouvido falar. Como não estava fazendo nada de útil naquele quente Sábado carioca, fui correr atrás dessa leitura e não foi difícil encontrar o pdf (obrigado, internet! S2). O texto que segue é uma visão minha do artigo de Eric Raymond enquanto completo outsider da área, mas que pesquisa tecnologia em um contexto educacional.
Coloco também uma ressalva sobre mim que pode influenciar minha visão: sou traumatizado com textos de tecnologia dos anos 1990. Sim, é um trauma bobo, mas quando sua área ainda é fanática por Pierre Lévy, é o que acaba acontecendo. Junte aí Manuel Castells e Howard Rheingold: está feito o trauma tecnológico desse pedagogo que vos fala.
Vamos começar pelo começo, com esse trecho do prefácio de Bob Young bem simbólico do que nos espera:
“No (negócio) de hardware de computador, onde a liberdade reina tanto para fornecedores quanto para consumidores da mesma forma em escala global, a indústria gera a mais rápida inovação em produto e valor de consumidor que a indústria jamais viu.” (p. IX, Tradução minha)
Se você é xovem demais para pescar a referência, se trocar “negócio de hardware de computador” por qualquer outra coisa que tenha sido privatizada no mundo nos últimos 40 anos, se encaixa perfeitamente no discurso neoliberal feito para justificar. Se me dessem esse trecho sem autoria, eu não saberia responder se quem escreveu foi o FHC, o Paulo Guedes ou o CEO da Red Hat. Bom começo, esperava um texto comunista, talvez anarquista, e parei no panfleto da convenção do Partido Novo. Ah, oi, Amoedo, belo sapatênis esse seu. Comprou em New York, né? Imaginava.
Voltando para o texto de Raymond, a metáfora da Catedral e do Bazar pode parecer uma coisa bonita para um desavisado. A centralização da Catedral versus a decentralização do Bazar; a linearidade do primeiro, contra o caos do segundo; a verticalidade da catedral, contra a horizontalidade do bazar. Em pleno 2021, se você não abraçou o caos, foi o caos que abraçou você, falta talvez apenas notar, sinto lhe dizer. A escolha pelo bazar parece óbvia.
Lógico, o modelo catedral era utilizado tanto por softwares de código fechado quanto por alguns de código aberto. O principal entusiasta, talvez inventor, do modo bazar era Linus Torvalds, o criador do Linux. Aliás, parte considerável do espaço do artigo é dedicada a elogiar o finlandês. Linus, por ser preguiçoso, teria sido o precursor do modelo bazar, uma forma menos trabalhosa de conseguir um grande software.
Quando você procurei no DuckDuckGo por imagens relacionadas ao termo “bazar”, foram apresentadas imagens dos mercados orientais: Istambul, Marrocos, Índia... Lugares definitivamente mais animados que uma reunião de intelectuais religiosos em uma catedral. O problema é que quanto mais eu lia o texto de Raymond, mais minha cabeça formava a imagem do Barra Shopping. O bazar que o autor descrevia através de seus projetos era mais parecido com um shopping de madame do que com um mercado que mistura todos os tipos de pessoas.
Primeiro porque o autor diferencia o usuário de software livre como alguém geralmente mais capacitado tecnicamente. Ao longo de todo o texto, parece que a preocupação do desenvolvedor é encontrar e fidelizar parceiros de desenvolvimento que vão lhe dar dicas quentes para melhorar seu código ou corrigir bugs. O “usuário comum” pode ficar lá nas portas da catedral esperando o conselho de sábios lhes dar uma migalha. No bazar, parece ser bem vindo o cara que sabe ler código-fonte de programas, que sabe escovar uns bits para não apenas alertar o desenvolvedor do bug, mas já dar uma ideia de onde o bug está e o que faria para resolver. A lista de relato de erros parece mais um processo seletivo do que outra coisa. Se no Shopping das madames a roupa de grife e a conta bancária ajudam os vendedores a separar a elite da plebe, nesse bazar um diploma de tecnologia da informação ou a demonstração prática de conhecimento em programação parece dividir quem entra e quem não entra nesse mercado.
Tem muita da fantasia dos anos 1990 que o Erick Felinto aponta, uma visão religiosa da tecnologia. A internet era o novo paraíso, o computador a porta para o reino celeste e a linguagem de programação a língua dos anjos. A salvação era tecnológica, não bíblica. Mas talvez nós tenhamos sorte: os cristãos esperam o tal do paraíso faz uns 2000 anos, a gente tá esperando faz uns 30 anos mais ou menos. Estamos no lucro, vai?
O computador não é o portal do paraíso, a internet não nos levou ao paraíso, mas ajudou a trazer do esgoto da sociedade para a liderança das Instituições a extrema-direita. As linguagens de programação não se tornaram o novo idioma que une todos os povos do mundo, cada vez mais são dialetos usados por pequenos grupos, cada vez mais restritos, cada vez mais poderosos e com mais controle sobre nossas vidas. O software livre não virou o bazar, lar do caos e da cacofonia de milhões de vozes, mas a festa de socialite onde só se entra com convite.
O modelo defendido por Raymond é o do hobbie que vai ficando mais sério, se profissionalizando, reunindo mais iguais conforme fica mais famoso. É a expectativa de que o problema que te afeta, atinge mais gente e que tua solução para o problema é vista como relevante por outros. Isso não é um bazar e você não precisa ir a Istambul para perceber isso. Vá na feira do seu bairro essa semana, preste atenção nos rostos, nas vozes, nas roupas, que você vai ver que não se parece em nada com o que Raymond descreve e defende.
Enquanto o software livre se desenvolve nesses clubinhos, as multidões estão nas portas das Catedrais, cada vez menos confiantes em outras soluções, cada vez mais dependente da estrutura fornecida por essa elite. E as “sugestões superficiais” da plebe se tornam o combustível que torna a catedral cada vez maior, mais pomposa.
Desenvolvedores têm família, precisam comer e pagar boletos como qualquer mortal. Se os projetos grandes de software livre foram bem-sucedidos em se viabilizar economicamente, o mesmo não pode ser dito de tantas outras iniciativas importantes que se mantém como puro hobbie do desenvolvedor. E ninguém é jovem para sempre. Parece óbvio, mas nem sempre isso é levado em consideração. Um dia a energia do jovem para codar o dia todo e chegar em casa para codar ainda mais para seu passatempo tecnológico acaba.
Há décadas o marketshare do Linux, principal sistema operacional de código aberto, não passa dos 1%, por mais que melhore, por mais que seja aperfeiçoado e hoje seja muito mais prático do que há 20 anos atrás. Ainda acho que a metáfora do bazar, do bazar de verdade, seja a nossa melhor saída. Talvez não rir de iniciativas, como a do Ubuntu e do Mint, por exemplo, de se tornar mais agradável e fácil. Quem sabe a saída do 1% não more em receber clientes comuns, o cara que só quer entrar na sua barraca e comprar, que vai reclamar as vezes que sua manga tá feia sem precisar se preocupar em estudar a logística que você faz para comprar do produtor e vender ali, sem ser engenheiro agrônomo para te indicar que talvez a manga espada e não a manga rosa é a fruta da época.
Talvez a solução seja gostar mais de gente comum, que não vai te dar nada em troca e não apenas do carinha que vai te ajudar com a mão-de-obra gratuita. Ou você é o feirante ou a socialite. Dizer que é o primeiro, mas se comportar como a segunda não dá. Nunca deu.
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