Presidente e Ecologia das Mídias

Desde a eleição de Bolsonaro a discussão a cada novo retrocesso proposto pelo governo é até onde estamos retrocedendo: alguns apostam no retorno ao clima da Ditadura Militar; outros falam em um retorno ao século XIX; outros ainda argumentam que estaríamos retornando à Idade Média. A proposta desse texto é indicar, com as limitações desse espaço, que ao menos em partes o último grupo tem alguma razão. Para isso utilizaremos a Media Ecology como base teórica.

Comecemos pelo princípio. No que é considerado o texto inaugural do campo de pesquisa, Postman (1970) definiu da seguinte forma a Media Ecology:

“A intenção [da Ecologia das Mídias] é estudar a interação entre pessoas e suas tecnologias de comunicação. Particularmente, a ecologia das mídias se concentra em como os meios de comunicação afetam a percepção, compreensão, sensação e valor humanos; e como nossas interações com os meios facilitam ou impedem nossas chances de sobrevivência. A palavra ecologia implica no estudo de ambientes: sua estrutura, conteúdo e impacto nas pessoas. Um ambiente é, afinal, um complexo sistema de mensagem que impõe aos humanos certas formas de pensar, sentir e agir. Ele estrutura o que podemos ver e dizer e, portanto, fazer. Ele nos designa papéis e insiste que os representemos. Ele especifica o que é permitido fazer e o que não é. Algumas vezes, como no caso de uma corte, uma sala de aula e um escritório, as especificações são explícitas e formais. No caso do ambiente midiático (por exemplo, livros, rádio, filme, televisão, etc.) essas especificações são mais implícitas e informais, escamoteadas sob nossas premissas de que não estamos lidando com um ambiente, mas meramente com uma máquina. A ecologia das mídias tenta tornar essas especificações explícitas. Ela tenta encontrar os papéis que os meios nos forçam a interpretar, como os meios estruturam o que nos estamos vendo, porque os meios fazem com que nos sintamos e atuemos da forma como fazemos.” (p. 161, tradução nossa)

A extensa definição de Postman por si só já merecia um texto de análise, mas isso fica para outro momento. Longe da separação em períodos históricos, a Ecologia das Mídias costuma dividir – tomando a experiência brancocêntrica como universal – uma divisão em ambientes midiáticos que levam o nome do meio principal daquele período. Assim, temos os ambientes midiáticos oral, quirográfico, tipográfico e eletrônico. Se saímos do ambiente eletrônico para o digital ainda é uma questão aberta no campo, com a resposta sendo sim ou não dependendo de quem você leia. (Strate, 2017)

Cada um desses ambientes não é completamente dominado por um único meio, mas existe uma relação caótica em entre meios, pessoas e ambiente, resultando na sociedade na qual esse ambiente está inserido. Exemplificando, o ambiente tipográfico não tinha apenas o impresso, mas permaneciam atuantes a oralidade e a quirografia, ao mesmo tempo atravessando o impresso e sendo por este atravessados.

Começando a trazer a discussão para o nosso quintal, o Brasil não teve um ambiente tipográfico completamente contemporâneo ao europeu. Enquanto a maquina de Gutemberg é inventada no século XV na Europa, já existindo muito antes em países asiáticos como Coréia e China, a primeira prensa de tipos móveis só chegou ao nosso país após a família Real Portuguesa, em 1808, no começo do século XIX. Juntando a isso a demora na disponibilização de educação escolar para todos, que só foi acontecer, e com muitos poréns, por volta do ano 2000, temos um país com um ambiente oral estendido, como raramente é visto até entre outros países colonizados na América Latina.

A oralidade é o domínio do audível, onde ritmo e rimas são meios utilizados garantir a memorização e passagem a diante do conhecimento dos povos. A oralidade, enquanto meio, requer a proximidade das pessoas, foco na ação e não na análise. Sem a agência do domínio visual, a palavra falada não tem edição, não tem conserto; o que se pode fazer é justificar e corrigir o que foi falado. (Ong, 2012)

Embora a passagem do ambiente oral para o quirográfico traga a externalização da memória para o pergaminho na forma de escritas pictográficas ou alfabéticas, por muito tempo o manuscrito é tratado como um registro da fala, sendo amplamente associado à oralidade, se libertando apenas com a fixação das letras e sua separação em espaços uniformes pela superfície do papel possibilitadas pela tipografia. (Idem)

Dito isso, vamos ao senhor presidente. Ele muitas vezes age como se estivesse no ambiente midiático oral, onde a palavra deixa de existir assim que sai da boca do orador, sendo difícil atribuição de autoria. Não são poucas as vezes em que ele desafia registros escritos e visuais para dizer que não disse o que havia dito. E muitas vezes fala, aparentemente, sem o registro escrito prévio, a análise e o planejamento que um habitante de um ecossistema tecnológico que já tem a tipografia entre suas espécies deveria ter.

Veja bem, não o estou chamando de analfabeto, até porque mesmo o analfabeto é atravessado ao longo de sua vida pelos desdobramentos de séculos de meios tipográficos agindo sobre nossa estrutura urbana e social. Como capitão – mesmo da reserva – do exército, pressupõe-se que ele tenha pleno domínio dos meios quirográficos.

Mas ainda prefere agir oralmente. Como na fala sobre a vacina. Antes de afirmar que a vacina não é de São Paulo, mas do Brasil, ele afirma que “(...) apesar da vacina... apesar, não, né? A Anvisa aprovou, não tem que discutir mais (...)”. Observa-se a ausência de qualquer análise e preparação prévia.

Referências

POSTMAN, Neil. The Reformed English Curriculum. In: ALVIN, Euric C. (Org.). High School 1980: The Shape of the Future in American Secondary Education. New York: Pitman Publish Corporation, 1970. p. 160–168.

STRATE, Lance. Media Ecology: An Approach to Understanding the Human Condition. New York: Peter Lang, 2017.

ONG, Walter. Orality and Literacy. The Tecnologizing of the Words. New York: Routledge, 2012.

<a href="https://remark.as/p/cleitonfelix.blog.br/presidente-e-ecologia-das-midias">Discuss...</a>