Resenha: A crise permanente, Marc Chesney

Introdução

Marc Chesney. A Crise Permanente: O poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da Democracia. Editora Unesp, 2020. https://editoraunesp.com.br/catalogo/9788539308255,a-crise-permanente

Esse texto pretende ser uma breve resenha não-técnica do livro “A Crise Permanente”, do autor Marc Chesney, lançado pela editora Unesp em 2020. Descobri esse livro pelo perfil da editora no Instagram no primeiro dia do ano, quando compartilhou nos stories o post de alguém que havia adquirido o livro. Publicado no seu idioma original em 2018 pela editora Palgrave Macmillan, a obra de Chesney cobre com mais atenção o período da crise da economia grega e o começo do governo Trump nos EUA, apesar de focar pouquíssimo nesse último e focar muito no primeiro, especialmente nas relações com as economias centrais do continente europeu.

Quem é Marc Chesney?

Segundo o LinkedIn, professor de matemática financeira na Universidade de Zurique, com passagem de quase dez anos pela Escola de Altos Estudos Comerciais (HEC) de Paris. Bacharel em matemática, pós-graduado e com dois títulos de mestrado pela Université de Paris. Na Université de Genève, mais um mestrado e um PhD antes de retornar para Sobornne.

É alguém, portanto, por dentro do mundo das finanças, tem formação para compreender como as engrenagens do capitalismo funcionam, o que nos ajudaria a entender algumas de suas posições no livro em análise.

Juventude europeia em risco novamente cem anos depois

Com um texto datado de meados da década passada, quando os eventos de 1914 completaram cem anos, Chesney escolhe iniciar evocando o começo da Primeira Guerra Mundial:

“Na noite de sábado, dia 1º de agosto de 1914, as famílias francesas e alemãs preparam-se para a angústia da separação. As ordens de mobilização geral acabaram de ser divulgadas. Nas cidades e aldeias ecoam com insistência os sinos das igrejas. Eles trazem a notícia tão temida da declaração de guerra, já anunciando o medo e o sofrimento que virão. O primeiro dia de mobilização será domingo, dia 2 de agosto. Desde cedo, a Estação do Leste em Paris se encherá de militares acompanhados das famílias. O mesmo acontecerá em Berlim, na Estação Anhalter. Em nome da salvação da civilização, eles serão os atores e vítimas do próprio naufrágio” (p.15).

E assim ele fecha a comparação, já no primeiro capítulo:

“Nos tempos atuais, a juventude europeia já não morre em massa nas trincheiras ou nos campos de batalha. Quando os jovens desaparecem prematuramente, isso se deve em geral aos acidentes de trânsito e ao suicídio. Porém os jovens são recrutados para participar de outra forma de guerra, a financeira, que os atinge duramente. Seus males são a depressão, o alcoolismo, o excesso de peso... justamente corolários do desespero. Seus medos: o futuro e as ameaças de desemprego e insegurança geradas pela instabilidade financeira. As novas gerações são infantilizadas pela mídia que muitas vezes apresenta o fútil como essencial e trata o que é essencial, na melhor das hipóteses, como fútil. Não dispondo das chaves para compreender os verdadeiros desafios, para eles o futuro parece indecifrável e, portanto, inquietante. O subemprego maciço instalou-se duravelmente em nossa sociedade, acarretando uma precarização crescente do mercado de trabalho e uma marginalização de faixas inteiras da população. Para um desempregado, a exclusão do mundo do trabalho significa a impossibilidade de construir um projeto de vida e a ausência de qualquer horizonte.” (p.22-23)

Como disse, Chesney é um conhecedor das engrenagens do capitalismo. Mas do que isso, ele é um crente do capitalismo enquanto sistema econômico e social. Para o autor, da mesma forma que as elites no começo do século XX arrastaram a juventude europeia para a morte em nome de seus interesses próprios, as elites do século XXI também o fazem pelo mesmo motivo. Notem o lugar ocupado pela categoria “juventude” na argumentação do professor: uma classe para ser dirigida, pastoreada, por uma elite que pensaria no bem da sociedade. As elites falham em pastorear por estarem focadas em sua própria diversão; a juventude falha ao não ter a capacidade de perceber que está sendo negligenciada. Em nenhum momento do livro há, de fato, um questionamento do sistema. Há uma crítica do que as elites econômicas fizeram com esse sistema, com as propostas no último capítulo sendo uma regulamentação, uma correção de rota.

Mercado financeiro como cassino, hackers como mercenários, orçamento público como fundo de seguro

Para Chesney, houve até meados do século XX uma elite progressista na Europa, preocupada com o desenvolvimento social, em não apenas acumular riqueza, mas compartilhá-la com as classes subalternas. O auge desse progresso seria o que ele chamou de “primeira globalização”, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, seguindo os ideais do liberalismo e proporcionada principalmente pelas invenções da máquina à vapor, do telégrafo e do telefone.

Dois eventos mudam esse cenário: Thatcher, Reagan e seu neoliberalismo na década de 1980 e a popularização da internet na década seguinte. O primeiro levou a um enfraquecimento do Estado regulador diante do mercado e a implantação do que Chesney chamou de falso liberalismo (afinal, todo liberalismo que não funciona é jogado no cesto do “falso liberalismo”, daquele que “não liberalizou o suficiente”. Argumento mais clássico que os Beatles); o segundo permitiu uma aproximação de espaços ainda distantes do mundo em velocidades antes inimagináveis. A combinação dos dois acontecimentos resultou em empresas transnacionais, principalmente bancos, com poder econômico tão grande quanto o dos Estados ou, mesmo que menor, ainda grandes e influentes o suficiente para serem categorizadas como too big to fail, ou, em português, grande demais para falhar. Ou seja, em caso de quebra, os governos se sentem na obrigação de salvá-las pelo bem da economia, liberando os acionistas das consequências das suas apostas e entregando esse ônus para o orçamento público, para a sociedade. Além disso, essas empresas mantinham/mantém uma relação próxima com os Bancos Centrais, sendo comum o trânsito de economistas entre as duas instituições.

Empoderadas por uma geração de especialistas em tecnologia extremamente valorizada e encarregada de cuidar da estrutura tecnológica e informacional que permite a operação desse novo mercado financeiro, essas elites econômicas implementaram um “capitalismo cassino” (conceito emprestado por Chesney do livro homônimo de 2012, ainda sem tradução, de Hans-Werner Sinn), onde há o prazer pelo risco e pelo lucro grandioso que vem das apostas. Esses hackers formados em universidades de elite, rejeitando a lógica anterior de pastoreadores da sociedade em direção ao progresso, são disputados a peso de ouro pelo mercado financeiro porque obter a informação antes significa o poder de direcionar a operação, enganar seus adversários para que façam apostas erradas, aumentar os próprios lucros e tornar os investidores clássicos objetos de museu.

Entenda, Chesney não tem problema com as práticas de apostas financeiras ou a disputa pela mão de obra de tecnologistas em si. Essa parte estaria coberta pela liberdade liberal que tanto o agrada. O incômodo do professor da Universidade de Zurique é exatamente com o que ele chamou de “pseudo-liberalismo” dessa elite que privatiza os lucros de suas apostas que dão certo, enquanto socializa os prejuízos quando as apostas saem muito errado. Como se tornou grande demais e influente demais na economia, o mercado financeiro, segundo Chesney, agora controla os caminhos econômicos dos governos, sejam de direita ou esquerda, a seu favor. Dito de outra forma e aproximando a argumentação do autor da nossa realidade, não há diferença prática entre Paulo Guedes e Fernando Haddad porque ambos, gostando disso ou não, são obrigados a agradar e cumprir os desejos desse mercado financeiro, absorver seus prejuízos enquanto não compartilha qualquer progresso social com seus lucros.

Em geral, Chesney passa a analisar o caso da crise financeira da Grécia e faz um detalhamento mais técnico da forma como o mercado financeiro em lógica de capitalismo-cassino opera, finalizando com algumas sugestões para resolver o problema. Mas prefiro finalizar essa resenha com dois trechos da análise que o autor faz dos acontecimentos da década passada na Grécia e como isso nos trás ecos tanto de Brasil 2016, quanto de Brasil 2024. Vamos ao primeiro:

“Se, como indica a moderna teoria financeira, os mercados financeiros se comportam frequentemente de modo irracional, procurar satisfazê-los não seria só ilusório, mas também encorajaria sua tendência para a irracionalidade.

(...)

É inútil tentar tranquilizar mercados financeiros dominados por tais atores. A partir do momento em que as transações financeiras são efetuadas a frequência cada vez mais elevada, ou seja, alguns milionésimos de segundo no caso das operações de alta frequência, aquilo que produz lucros desejados é a febrilidade das cotações, e não sua estabilidade.

Paralelamente, cresce na população um sentimento de impotência. Os responsáveis políticos são eleitos com programas... em seguida geralmente descartados, caso tenham a infelicidade de desagradar aos mercados financeiros, cujo poder é contrário aos princípios básicos da democracia.” (p.44-45)

E termino com a constatação do ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis em 2015: “o governo defronta-se com um golpe de Estado de um novo tipo. Nossos adversários não são mais, como em 1967, os tanques, mas os bancos” (p.46).