Resenha: O Mundo se Despedaça, Chinua Achebe

AVISO: A resenha contará com spoilers da história.

“A história se passa em Umuófia, a aldeia mais temida da Ibolândia, terra  do povo Ibo, e o personagem central é o bravo lutador Okonkwo, um dos respeitáveis patriarcas da comunidade. Mas seu mundo, de repente, começa a ruir. Por razões internas, ligadas a rígidos códigos tribais, ele cai em desgraça dentro da própria tribo, e, logo em seguida, tem de lidar com uma nova e inesperada força: o colonizador branco. Esse contato, a princípio caracterizado apenas por um certo estranhamento, com o tempo vai se tornando abertamente conflituoso.”

O Okonkwo construído por Achebe é um oposto. Com um pai delicado que amava mais as artes do que a guerra e mais a música do que o trabalho braçal, por isso sendo insignificante na vida social da tribo, Okonkwo decide desde cedo que será absolutamente tudo o que o pai não tivera a capacidade de ser: guerreiro temido, herói de guerra, agricultor próspero capaz de ter e sustentar diversas esposas e filhos. E esse será o temor maior de sua vida: que alguém veja semelhanças entre ele e o pai e que seus filhos puxem ao avô paterno.

A história começa em um ponto onde todos os planos de Okonkwo estão indo bem: ele é um guerreiro temido dentro da sua comunidade, apesar de ser reletivamente jovem, marido de várias mulheres, pai de muitas crianças e agricultor capaz de sustentar todas as bocas de seu compound. E o autor utiliza essa posição de Okonkwo para trabalhar durante uma longa primeira parte, sempre caminhando narrativamente entre o temor respeitoso e o ranço mal disfarçado, os costumes daquele povo, a relação com o sagrado, com sua família, com a comunidade e com a terra.

Nwoye, filho mais velho, é o pesadelo constante de Okonkwo: o garoto o faz lembrar do próprio pai e o guerreiro apela para tudo na tentativa de colocar o jovem no caminho que considera correto. Ezinma, por outro lado, carrega as características que Okonkwo vê como fundamentais em um grande homem, mas tem uma falha irremediável: nasceu mulher em uma sociedade extremamente patriarcal, seu trabalho é ser uma esposa submissa e fértil, não uma guerreira e líder. Um conflito que termina o livro sem solução.

Mas o que o despedaçamento do mundo de Okonkwo pode nos ensinar sobre colonialismo e decolonialidade? Vou tratar de acordo com as etapas em que, acredito, o fato se desdobrou. O mundo se despedaçou…

  1. Quando colocou o dever comunitário acima do próprio bem-estar e do bem-estar da família. Em certo momento do livro, os problemas entre Nwoye e Okonkwo pareciam solucionados pela chegada de mais um personagem ao compound. A estadia durou mais que o previsto, mas o conselho de notáveis da comunidade finalmente tomou uma decisão. Pela proximidade afetiva, Okonkwo foi dispensado pelos mais velhos da obrigação de cumprir as ordens. Porém, escolheu ir mesmo assim para demonstrar virilidade. Mentalmente, o filho e ele jamais foram os mesmos e, para mim, a pedra fundamental de tudo o que ocorreu depois está aqui;

  2. Quando foi obrigado a se separar de sua terra. Tão ou mais importante que a comunidade em si no universo narrado por Achebe é o território: ali se manifesta o sagrado e habitam os espíritos dos ancestrais e dos demônios. O território, seus elementos naturais e etéreos e suas formas de vida são partes centrais daquela cultura. E cultura, território e as relações sociais formam a comunidade. Quando Okonkwo é obrigado a fugir às pressas com toda a família para a comunidade de origem de sua falecida mãe, perde Okonkwo e perde a comunidade: o primeiro pela perda dos laços territoriais, culturais e sociais e a comunidade por perder um de seus melhores guerreiros e uma das vozes mais respeitadas do conselho em um momento crucial da história;

  3. Quando, após o retorno à Umuófia, se dá conta que cultural e afetivamente não tem para onde voltar. Okonkwo sonha todos os dias no exílio forçado com o retorno para sua comunidade, apesar dos avisos de um amigo sobre a situação da terra natal. No momento em que finalmente pode retornar, descobre que pouco restou do lugar que guardou no coração. Nas palavras do amigo de Okonkwo: “O homem branco é muito esperto. Chegou calma e pacificamente com a sua  religião. Nós achamos graça nas bobagens deles e permitimos que ficasse  em nossa terra. Agora, ele conquistou até nossos irmãos, e o nosso clã  já não pode atuar como tal. Ele cortou com uma faca o que nos mantinha  unidos, e nós nos despedaçamos.” (p.198) Os deuses de Okonkwo estavam enfraquecidos: no lugar das divindades do território, as pessoas de Umuófia agora cultuavam o Deus de uma rainha branca de uma terra muito distante. E, apesar das tentativas de demonstrar força, o conselho de sábios foi humilhado por um homem branco covarde que se esconde atrás das armas de guardas negros de uma comunidade que tivera a azar de passar primeiro pelo que Umuófia passava naquele momento.

Confesso que compreendo, mas não gosto do final do livro. Apesar de considerar que, efetivamente, a história acaba umas cem páginas antes com o exílio de Okonkwo, o autor poderia ter escolhido um fim mais à altura da construção do personagem. Bom livro se você se interessa pela cultura do continente africano, é composto por capítulos curtos, é só tomar cuidado com os rompantes de “homem da civilização” que batem no Achebe de vez em quando.