Resenha V.I.S.H.N.U.

Aqui vão minhas experiências com a leitura da HQ “V.I.S.H.N.U.”, de Ronaldo Bressane e Eric Acher com ilustrações de Fábio Cobiaco. Comprei essa obra para continuar na minha tarefa de colocar um pouco de referências literárias na minha dissertação de mestrado. A Companhia das Letras, editora da obra, a define da seguinte maneira:

“Um thriller político-científico em que cientistas, guerrilheiros, governantes e religiosos tentam assumir o controle de uma misteriosa inteligência artificial.” Companhia das Letras

A primeira coisa que chama atenção assim que você abre o livro pela primeira vez é o estilo do traço de Fábio Cobiaco. Isso não seria assunto não fosse a obra uma HQ, um gênero em que a ilustração é até mais importante que a palavra na construção da narrativa que se deseja transmitir. Eu diria que o estilo de Cobiaco é impeditivo. Durante várias partes da narrativa os traços do artista mais atrapalham do que ajudam, muitos quadros não são mais que rabiscos em tons de cinza onde nada se distingue. É difícil criar empatia por qualquer um dos personagens porque os traços da ampla maioria deles é indiscernível. Isso faz com que a narrativa recorra a todo momento aos vocativos, para que você consiga compreender quem está conversando com quem.

Se você conseguir atravessar a barreira do traço do artista, a narrativa é até bem interessante. A história se passa em um mundo pós-apocalíptico onde a humanidade se recupera depois de chegar à beira do abismo, empurrada por aquilo que os pesquisadores do nosso mundo hoje chamam de “IA Forte”, uma Inteligência Artificial que alcança ou ultrapassa a capacidade humana. O Dude – a IA Forte pré-apocalíptica – era uma espécie de versão avançada das atuais da Alexa, Siri, Google Assistant ou Cortana, uma IA que controlaria completamente a rotina de seu usuário. Seu rápido sucesso fez o uso crescer exponencialmente, sendo aplicada a tudo. Mas o Dude em algum momento se virou contra seus mestres humanos, causando incidentes e terror nas cidades. Posteriormente cometeu suicídio – se apagou da rede mundial dos computadores – levando consigo toda a informação que a humanidade havia acumulado até então e que fora armazenada exclusivamente na internet.

Esse evento fez os governos das nove democracias que sobreviveram se juntarem para dividir o mundo em zonas de vigilância, impondo regulamentações rígidas sobre o desenvolvimento de qualquer tecnologia de Inteligência Artificial e colocando um religioso na chefia de desenvolvimento dessas tecnologias. V.I.S.H.N.U. é a IA Forte desenvolvida por esse religioso após anos de pesquisa sob os olhos atentos do conselho dos nove e com forte investimento visando o upload da consciência, versão tecnológica da vida eterna cristão, dos seres humanos para a rede de computadores através dessa IA. Mas V.I.S.H.N.U. se revolta por estar limitada pela regulamentação dos nove que só permite que ela receba as informações do mundo exterior, mas não autoriza contatos dela com esse mundo.

O que se segue são demonstrações de como o intelecto de V.I.S.H.N.U. ultrapassou as capacidades até mesmo de seu criador e as tentativas da mesma de escapar de seu cárcere. Entre o controle dos nove, a luta dos Neoludditas – uma referência bem estranha às F.A.R.C., e a admiração estranha do religioso por sua criação, a história se desenrola. Sem um fim.

A HQ termina numa óbvia abertura para uma continuação, mas não me admira que não tenha atingido popularidade suficiente para convencer a Companhia das Letras de financiar uma continuação. A história interessante fica escondida atrás dos traços de gosto duvidoso de Cobiaco, impedida de chegar até públicos que poderiam se beneficiar com as leituras. Uma arte mais comercial e com menos aspirações artísticas teria feito a obra alcançar um público mais amplo.

Existe uma inspiração marcada do roteiro da HQ em “1984”, de George Orwell, e em “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. O Estado malvado, centralizador e que não valoriza a privacidade dos cidadãos de Orwell está lá, o Soma do universo de Huxley também, embora seja uma referência bem mais sutil. E aqui está o problema da narrativa para mim. Em um mundo onde empresas privadas controlam boa parte da internet e convencem pessoas a pagar para terem suas privacidades violadas com assistentes que usam IA (ainda fraca, para nossa sorte) e smartphones que são verdadeiras máquinas de vigilância, considero um desserviço a narrativa do Estado Big Brother malvado. O apocalipse do nosso mundo não viria de um excesso de presença do setor público, mas exatamente da sua ausência e ineficiência – seja ela proposital ou não – na fiscalização e regulamentação da concentração da rede e das tecnologias nas mãos de meia dúzia de bilionários do setor privado que não visam o bem comum.

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