Cleiton Felix

Educação e Tecnologia

AVISO: A resenha contará com spoilers da história.

“A história se passa em Umuófia, a aldeia mais temida da Ibolândia, terra  do povo Ibo, e o personagem central é o bravo lutador Okonkwo, um dos respeitáveis patriarcas da comunidade. Mas seu mundo, de repente, começa a ruir. Por razões internas, ligadas a rígidos códigos tribais, ele cai em desgraça dentro da própria tribo, e, logo em seguida, tem de lidar com uma nova e inesperada força: o colonizador branco. Esse contato, a princípio caracterizado apenas por um certo estranhamento, com o tempo vai se tornando abertamente conflituoso.”

O Okonkwo construído por Achebe é um oposto. Com um pai delicado que amava mais as artes do que a guerra e mais a música do que o trabalho braçal, por isso sendo insignificante na vida social da tribo, Okonkwo decide desde cedo que será absolutamente tudo o que o pai não tivera a capacidade de ser: guerreiro temido, herói de guerra, agricultor próspero capaz de ter e sustentar diversas esposas e filhos. E esse será o temor maior de sua vida: que alguém veja semelhanças entre ele e o pai e que seus filhos puxem ao avô paterno.

A história começa em um ponto onde todos os planos de Okonkwo estão indo bem: ele é um guerreiro temido dentro da sua comunidade, apesar de ser reletivamente jovem, marido de várias mulheres, pai de muitas crianças e agricultor capaz de sustentar todas as bocas de seu compound. E o autor utiliza essa posição de Okonkwo para trabalhar durante uma longa primeira parte, sempre caminhando narrativamente entre o temor respeitoso e o ranço mal disfarçado, os costumes daquele povo, a relação com o sagrado, com sua família, com a comunidade e com a terra.

Nwoye, filho mais velho, é o pesadelo constante de Okonkwo: o garoto o faz lembrar do próprio pai e o guerreiro apela para tudo na tentativa de colocar o jovem no caminho que considera correto. Ezinma, por outro lado, carrega as características que Okonkwo vê como fundamentais em um grande homem, mas tem uma falha irremediável: nasceu mulher em uma sociedade extremamente patriarcal, seu trabalho é ser uma esposa submissa e fértil, não uma guerreira e líder. Um conflito que termina o livro sem solução.

Mas o que o despedaçamento do mundo de Okonkwo pode nos ensinar sobre colonialismo e decolonialidade? Vou tratar de acordo com as etapas em que, acredito, o fato se desdobrou. O mundo se despedaçou…

  1. Quando colocou o dever comunitário acima do próprio bem-estar e do bem-estar da família. Em certo momento do livro, os problemas entre Nwoye e Okonkwo pareciam solucionados pela chegada de mais um personagem ao compound. A estadia durou mais que o previsto, mas o conselho de notáveis da comunidade finalmente tomou uma decisão. Pela proximidade afetiva, Okonkwo foi dispensado pelos mais velhos da obrigação de cumprir as ordens. Porém, escolheu ir mesmo assim para demonstrar virilidade. Mentalmente, o filho e ele jamais foram os mesmos e, para mim, a pedra fundamental de tudo o que ocorreu depois está aqui;

  2. Quando foi obrigado a se separar de sua terra. Tão ou mais importante que a comunidade em si no universo narrado por Achebe é o território: ali se manifesta o sagrado e habitam os espíritos dos ancestrais e dos demônios. O território, seus elementos naturais e etéreos e suas formas de vida são partes centrais daquela cultura. E cultura, território e as relações sociais formam a comunidade. Quando Okonkwo é obrigado a fugir às pressas com toda a família para a comunidade de origem de sua falecida mãe, perde Okonkwo e perde a comunidade: o primeiro pela perda dos laços territoriais, culturais e sociais e a comunidade por perder um de seus melhores guerreiros e uma das vozes mais respeitadas do conselho em um momento crucial da história;

  3. Quando, após o retorno à Umuófia, se dá conta que cultural e afetivamente não tem para onde voltar. Okonkwo sonha todos os dias no exílio forçado com o retorno para sua comunidade, apesar dos avisos de um amigo sobre a situação da terra natal. No momento em que finalmente pode retornar, descobre que pouco restou do lugar que guardou no coração. Nas palavras do amigo de Okonkwo: “O homem branco é muito esperto. Chegou calma e pacificamente com a sua  religião. Nós achamos graça nas bobagens deles e permitimos que ficasse  em nossa terra. Agora, ele conquistou até nossos irmãos, e o nosso clã  já não pode atuar como tal. Ele cortou com uma faca o que nos mantinha  unidos, e nós nos despedaçamos.” (p.198) Os deuses de Okonkwo estavam enfraquecidos: no lugar das divindades do território, as pessoas de Umuófia agora cultuavam o Deus de uma rainha branca de uma terra muito distante. E, apesar das tentativas de demonstrar força, o conselho de sábios foi humilhado por um homem branco covarde que se esconde atrás das armas de guardas negros de uma comunidade que tivera a azar de passar primeiro pelo que Umuófia passava naquele momento.

Confesso que compreendo, mas não gosto do final do livro. Apesar de considerar que, efetivamente, a história acaba umas cem páginas antes com o exílio de Okonkwo, o autor poderia ter escolhido um fim mais à altura da construção do personagem. Bom livro se você se interessa pela cultura do continente africano, é composto por capítulos curtos, é só tomar cuidado com os rompantes de “homem da civilização” que batem no Achebe de vez em quando.

Introdução

Marc Chesney. A Crise Permanente: O poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da Democracia. Editora Unesp, 2020. https://editoraunesp.com.br/catalogo/9788539308255,a-crise-permanente

Esse texto pretende ser uma breve resenha não-técnica do livro “A Crise Permanente”, do autor Marc Chesney, lançado pela editora Unesp em 2020. Descobri esse livro pelo perfil da editora no Instagram no primeiro dia do ano, quando compartilhou nos stories o post de alguém que havia adquirido o livro. Publicado no seu idioma original em 2018 pela editora Palgrave Macmillan, a obra de Chesney cobre com mais atenção o período da crise da economia grega e o começo do governo Trump nos EUA, apesar de focar pouquíssimo nesse último e focar muito no primeiro, especialmente nas relações com as economias centrais do continente europeu.

Quem é Marc Chesney?

Segundo o LinkedIn, professor de matemática financeira na Universidade de Zurique, com passagem de quase dez anos pela Escola de Altos Estudos Comerciais (HEC) de Paris. Bacharel em matemática, pós-graduado e com dois títulos de mestrado pela Université de Paris. Na Université de Genève, mais um mestrado e um PhD antes de retornar para Sobornne.

É alguém, portanto, por dentro do mundo das finanças, tem formação para compreender como as engrenagens do capitalismo funcionam, o que nos ajudaria a entender algumas de suas posições no livro em análise.

Juventude europeia em risco novamente cem anos depois

Com um texto datado de meados da década passada, quando os eventos de 1914 completaram cem anos, Chesney escolhe iniciar evocando o começo da Primeira Guerra Mundial:

“Na noite de sábado, dia 1º de agosto de 1914, as famílias francesas e alemãs preparam-se para a angústia da separação. As ordens de mobilização geral acabaram de ser divulgadas. Nas cidades e aldeias ecoam com insistência os sinos das igrejas. Eles trazem a notícia tão temida da declaração de guerra, já anunciando o medo e o sofrimento que virão. O primeiro dia de mobilização será domingo, dia 2 de agosto. Desde cedo, a Estação do Leste em Paris se encherá de militares acompanhados das famílias. O mesmo acontecerá em Berlim, na Estação Anhalter. Em nome da salvação da civilização, eles serão os atores e vítimas do próprio naufrágio” (p.15).

E assim ele fecha a comparação, já no primeiro capítulo:

“Nos tempos atuais, a juventude europeia já não morre em massa nas trincheiras ou nos campos de batalha. Quando os jovens desaparecem prematuramente, isso se deve em geral aos acidentes de trânsito e ao suicídio. Porém os jovens são recrutados para participar de outra forma de guerra, a financeira, que os atinge duramente. Seus males são a depressão, o alcoolismo, o excesso de peso... justamente corolários do desespero. Seus medos: o futuro e as ameaças de desemprego e insegurança geradas pela instabilidade financeira. As novas gerações são infantilizadas pela mídia que muitas vezes apresenta o fútil como essencial e trata o que é essencial, na melhor das hipóteses, como fútil. Não dispondo das chaves para compreender os verdadeiros desafios, para eles o futuro parece indecifrável e, portanto, inquietante. O subemprego maciço instalou-se duravelmente em nossa sociedade, acarretando uma precarização crescente do mercado de trabalho e uma marginalização de faixas inteiras da população. Para um desempregado, a exclusão do mundo do trabalho significa a impossibilidade de construir um projeto de vida e a ausência de qualquer horizonte.” (p.22-23)

Como disse, Chesney é um conhecedor das engrenagens do capitalismo. Mas do que isso, ele é um crente do capitalismo enquanto sistema econômico e social. Para o autor, da mesma forma que as elites no começo do século XX arrastaram a juventude europeia para a morte em nome de seus interesses próprios, as elites do século XXI também o fazem pelo mesmo motivo. Notem o lugar ocupado pela categoria “juventude” na argumentação do professor: uma classe para ser dirigida, pastoreada, por uma elite que pensaria no bem da sociedade. As elites falham em pastorear por estarem focadas em sua própria diversão; a juventude falha ao não ter a capacidade de perceber que está sendo negligenciada. Em nenhum momento do livro há, de fato, um questionamento do sistema. Há uma crítica do que as elites econômicas fizeram com esse sistema, com as propostas no último capítulo sendo uma regulamentação, uma correção de rota.

Mercado financeiro como cassino, hackers como mercenários, orçamento público como fundo de seguro

Para Chesney, houve até meados do século XX uma elite progressista na Europa, preocupada com o desenvolvimento social, em não apenas acumular riqueza, mas compartilhá-la com as classes subalternas. O auge desse progresso seria o que ele chamou de “primeira globalização”, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, seguindo os ideais do liberalismo e proporcionada principalmente pelas invenções da máquina à vapor, do telégrafo e do telefone.

Dois eventos mudam esse cenário: Thatcher, Reagan e seu neoliberalismo na década de 1980 e a popularização da internet na década seguinte. O primeiro levou a um enfraquecimento do Estado regulador diante do mercado e a implantação do que Chesney chamou de falso liberalismo (afinal, todo liberalismo que não funciona é jogado no cesto do “falso liberalismo”, daquele que “não liberalizou o suficiente”. Argumento mais clássico que os Beatles); o segundo permitiu uma aproximação de espaços ainda distantes do mundo em velocidades antes inimagináveis. A combinação dos dois acontecimentos resultou em empresas transnacionais, principalmente bancos, com poder econômico tão grande quanto o dos Estados ou, mesmo que menor, ainda grandes e influentes o suficiente para serem categorizadas como too big to fail, ou, em português, grande demais para falhar. Ou seja, em caso de quebra, os governos se sentem na obrigação de salvá-las pelo bem da economia, liberando os acionistas das consequências das suas apostas e entregando esse ônus para o orçamento público, para a sociedade. Além disso, essas empresas mantinham/mantém uma relação próxima com os Bancos Centrais, sendo comum o trânsito de economistas entre as duas instituições.

Empoderadas por uma geração de especialistas em tecnologia extremamente valorizada e encarregada de cuidar da estrutura tecnológica e informacional que permite a operação desse novo mercado financeiro, essas elites econômicas implementaram um “capitalismo cassino” (conceito emprestado por Chesney do livro homônimo de 2012, ainda sem tradução, de Hans-Werner Sinn), onde há o prazer pelo risco e pelo lucro grandioso que vem das apostas. Esses hackers formados em universidades de elite, rejeitando a lógica anterior de pastoreadores da sociedade em direção ao progresso, são disputados a peso de ouro pelo mercado financeiro porque obter a informação antes significa o poder de direcionar a operação, enganar seus adversários para que façam apostas erradas, aumentar os próprios lucros e tornar os investidores clássicos objetos de museu.

Entenda, Chesney não tem problema com as práticas de apostas financeiras ou a disputa pela mão de obra de tecnologistas em si. Essa parte estaria coberta pela liberdade liberal que tanto o agrada. O incômodo do professor da Universidade de Zurique é exatamente com o que ele chamou de “pseudo-liberalismo” dessa elite que privatiza os lucros de suas apostas que dão certo, enquanto socializa os prejuízos quando as apostas saem muito errado. Como se tornou grande demais e influente demais na economia, o mercado financeiro, segundo Chesney, agora controla os caminhos econômicos dos governos, sejam de direita ou esquerda, a seu favor. Dito de outra forma e aproximando a argumentação do autor da nossa realidade, não há diferença prática entre Paulo Guedes e Fernando Haddad porque ambos, gostando disso ou não, são obrigados a agradar e cumprir os desejos desse mercado financeiro, absorver seus prejuízos enquanto não compartilha qualquer progresso social com seus lucros.

Em geral, Chesney passa a analisar o caso da crise financeira da Grécia e faz um detalhamento mais técnico da forma como o mercado financeiro em lógica de capitalismo-cassino opera, finalizando com algumas sugestões para resolver o problema. Mas prefiro finalizar essa resenha com dois trechos da análise que o autor faz dos acontecimentos da década passada na Grécia e como isso nos trás ecos tanto de Brasil 2016, quanto de Brasil 2024. Vamos ao primeiro:

“Se, como indica a moderna teoria financeira, os mercados financeiros se comportam frequentemente de modo irracional, procurar satisfazê-los não seria só ilusório, mas também encorajaria sua tendência para a irracionalidade.

(...)

É inútil tentar tranquilizar mercados financeiros dominados por tais atores. A partir do momento em que as transações financeiras são efetuadas a frequência cada vez mais elevada, ou seja, alguns milionésimos de segundo no caso das operações de alta frequência, aquilo que produz lucros desejados é a febrilidade das cotações, e não sua estabilidade.

Paralelamente, cresce na população um sentimento de impotência. Os responsáveis políticos são eleitos com programas... em seguida geralmente descartados, caso tenham a infelicidade de desagradar aos mercados financeiros, cujo poder é contrário aos princípios básicos da democracia.” (p.44-45)

E termino com a constatação do ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis em 2015: “o governo defronta-se com um golpe de Estado de um novo tipo. Nossos adversários não são mais, como em 1967, os tanques, mas os bancos” (p.46).

Estou chegando no fim do primeiro ano de doutorado. Antes dele, vieram um ano e meio de pesquisa para a monografia durante a graduação e dois ano de pesquisa no mestrado, sempre trabalhando o tema de tecnologia e educação. Inicialmente abordando mais a questão das mídias digitais, depois focando mais na relação das Big Techs com a educação, chegando ao ponto atual de uma pesquisa mais voltada para discursos sobre usos de técnicas de inteligência artificial na educação e como se encaixam no discurso mais amplo sobre educação e trabalho do professor.

Pois bem, sempre que eu falo que pesquiso tecnologia e, pior ainda, quando especifico que vou tratar de questões sobre inteligência artificial, automaticamente meus pares dentro da academia decidem que eu vou praticar algum tipo de magia ocultista tecnofuturista muito complexa e difícil de entender para as mentes mortais. Dificilmente estou com energia, eu confesso, para explicar detalhadamente a metodologia que estou usando, a minha abordagem teórica e tudo mais. É mais cômodo ser o ocultista da tech perdido na educação do que ser o palestrinha exibido, mesmo que muitas vezes a palestra fosse necessária.

É uma realidade triste porque, no meu entender, revela uma falha de formação generalizada no campo das Ciências Humanas: a gente não estuda tecnologia. Pelo menos, não de forma suficiente. Menos ainda de forma não-utilitarista, romantizada ou demonizada. Parece um acordo tácito que tecnologia seja problema do pessoal estranho que circula pelos campus das ciências exatas (e dos quais não devemos nos aproximar!). Sem disciplinas que trabalhem especificamente sobre uma visão filosófica e sociológica do tema ou uma visão da tecnologia como algo transdisciplinar nos currículos (e que seja cumprido, não seja mais tinta num papel engavetado e cheio de poeira), a ideologia neoliberal nada de braçada.

Quando discutir o tema com as pessoas é inevitável ou uma escolha minha, tento sempre falar do tema aproximando com a realidade dos professores, que são meus colegas de curso, meus professores na universidade ou estudantes que em breve serão professores. Tento sempre mostrar que, sim, eles já pesquisam sobre o tema. Talvez não com aquela cara, não com aquele nome, daquele jeito, mas pesquisam. Eles e elas entendem o que eu tô pesquisando, só não estão acostumados com – ou foram inseridos na – formação discursiva que eu utilizo.

Meu referencial sobre educação não tem nada de inovador. Uso sempre Paulo Freire, Vera Candau, Luckesi, os trabalhos da minha própria orientadora. Não reinvento a roda. Nem quero reinventar. Todos são autores que as pessoas na área da educação já leram e releram até quase decorar. Até trechos mais famosos virarem tatuagem de gosto duvidoso em seus corpos. E é muito comum em algum ponto da conversa eu escutar um “ah, então é isso que você pesquisa?” com expressão entre a surpresa e a felicidade por compreender. Nunca me sinto subestimado quando me falam isso. Na verdade, me deixa feliz. Normalmente se segue um diálogo animado sobre como isso já afeta de alguma forma a rotina pessoal ou profissional da pessoa.

A ideia aqui não é me gabar, mas levantar a discussão de que tecnologia é, sim, tema para as Ciências Humanas. Acredito que as soluções para os problemas de vieses e violências mediadas pelos algoritmos só tem esperança de resolução com um movimento transdisciplinar. Nem só o pessoal das Exatas, nem só o pessoal de Humanas: o potencial de uma série de pessoas que transitem com um mínimo de desenvoltura entre os dois campos. A troca da visão de duas caixas separadas disciplinarmente, para uma outra, de campos complexos que em diversos pontos se tocam e se beneficiam mutuamente dessas trocas.

“(…) os benefícios e os déficits de uma nova tecnologia não são igualmente distribuídos. Existem, como existiram, vencedores e perdedores.” – Neil Postman, Technopoly.

“(…) nós não precisamos sempre seguir na direção que certa tecnologia nos levaria. Nós temos responsabilidades conosco e com nossas instituições que superam nossas responsabilidades com o potencial da tecnologia.” – Neil Postman, Building a bridge to 18th century.

Com a popularização dos LLMs (Large-Language Models), como o ChatGPT da OpenAI e o Bard da Google, geradores automáticos de textos seguindo instruções dadas por usuários ficaram ao alcance de uma maior parcela da população mundial.

A decisão de muitas universidades pelo mundo foi adicionar um software detector de textos gerados por IA ao arsenal já existente de softwares de identificação de plágio. Após relatos de diversos estudantes que foram vítimas de falso-positivos, pesquisadores da Universidade de Stanford realizaram um estudo e chegaram a conclusão de que estudantes imigrantes que não tem o inglês como primeira língua são as principais vítimas dos erros dessa nova linha de softwares. Essas falsas acusações acabam gerando impacto negativo na vida escolar e pessoal desses estudantes, que ficam com o ônus de provar a própria inocência.

A hipótese dos pesquisadores é de que, como o texto gerado por LLMs como o ChatGPT tende a ter uma variedade menor de vocabulário, essas IAs aprendem que um texto mais simples pode ter sido gerado com ajuda de IA e avisam os professores sobre a “fraude”. Essa vinculação acabaria atingindo estudantes que não tem o inglês como primeira língua porque geralmente eles tem um conhecimento mais limitado da gramática e do vocabulário da língua, escrevendo textos menos rebuscados que seus colegas falantes nativos do idioma.

Algumas universidades já começaram a proibir o uso desses softwares de detecção de textos gerados por IA, mas por motivos menos nobres: temem a propaganda negativa gerada pelos falso-positivos e os possíveis processos por parte dos estudantes falsamente marcados como fraudadores.

Leia mais: https://themarkup.org/machine-learning/2023/08/14/ai-detection-tools-falsely-accuse-international-students-of-cheating

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“E você, quem gostaria de encontrar, uma única e última vez, se fosse possível viajar no tempo? Um grande amor, um filho, um irmão, um amigo... Para quem gostaria de dizer algumas derradeiras palavras, ou mesmo o que nunca foi dito? Para alguém que já se foi? Ou que está por vir? O que gostaria de ouvir daquela pessoa que tanto lhe faz falta? Quais sentimentos, presos na garganta, viriam à tona? Viajar para se redimir? Para se desculpar? Para agradecer? Para corrigir algo? Para chorar até curar o coração? Para entender o presente? Para dizer certas verdades? Para descobrir o porquê? Para poder seguir em frente.”

Poucos livros me encorajam a sentar e escrever. O último foi “Uma Centena de Flores” no já longínquo 2018. A premissa da história é relativamente simples: uma cafeteria japonesa que serve um café capaz de te fazer viajar no tempo. Rapidamente se transformou em lenda urbana, atraiu multidões, que rapidamente se desinteressaram ao visitar e descobrir os detalhes. Existem regras. E essas regras são rígidas, limitantes inclusive daquilo que qualquer pessoa esperaria de uma viagem no tempo.

Aqui em casa nós temos o costume muito antigo de perguntar a pessoa o que ela quer de presente. Ou simplesmente levar a pessoa no shopping ou onde ela quiser para ela escolher e a outra pessoa simplesmente embalar. Até minha sobrinha de três anos já desencanou da história do idoso branco que invade residências na noite de Natal para deixar presentes. Tomei um esporro da criança totalmente de graça faz umas semanas quando tentei emplacar a história de que Papai Noel traria os presentes dela.

“Papai Noel nada, Dindo. Quem comprou foi você e a Vovó. Onde estão os presentes, hein?”

Então, mesmo desanimado inicialmente em ganhar livros, quando meus pais pediram para eu escolher alguma coisa até X valor na internet para ganhar de Natal, eu fui pesquisar... livros. Pela primeira vez em alguns anos não quis nada acadêmico. Queria literatura. Foi aí que esbarrei com esse livro.

Ele é adaptado de uma peça teatral escrita pelo autor e publicado em forma de livro. A tradução foi feita por Priscila Catão não diretamente do idioma original, mas da tradução para a língua inglesa. Acho que a única perda foi na definição da entidade que a moça que fica presa no café se tornou, não chega a ser prejudicial para a leitura.

O livro é dividido em quatro capítulos, quatro histórias que estão entrelaçadas, então não recomendo a leitura aleatória, melhor seguir linearmente mesmo. O estilo de escrita do autor é bem direto, sem muita enrolação ou invenção, algo que particularmente eu gosto. Apesar da simplicidade, a história te prende bastante. Foi o primeiro livro que li em menos de um dia.

O primeiro capítulo dá as regras da viagem no tempo, impõe todas as limitações, mostrando porque o lugar vive basicamente vazio apesar da capacidade chamativa de proporcionar viagens no tempo. Você vai compartilhando a frustração da Fumiko ao ouvir tudo o que ela não podia fazer e todas as “limitações técnicas” da viagem. Mas ali, a partir do desenrolar da história dela, você vai compreendendo qual é o público-alvo das viagens proporcionadas pelo Café Funiculì Funiculà. E isso me pegou demais com a história do último capítulo, principalmente, mas a verdade é que todos os capítulos me bateram forte, talvez exceto o primeiro.

É aquele tipo de livro que dá vontade de pegar a mão do autor e dizer: volta aqui, não vai embora, não, conta mais umas histórias. Vamos beber um café.

Ficha Técnica Título: Antes que o Café Esfrie Autor: Toshikazu Kawaguchi Tradução: Priscila Catão Editora Valentina 208 páginas Data de lançamento: 2022

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Sexta-Feira foi dia de finalmente ir até a Unirio entregar as cópias da dissertação e a documentação necessária para encerrar o mestrado e daqui umas (talvez muitas) semanas dar entrada no diploma. Por conta da pandemia, eu não ia até a universidade presencialmente desde Março de 2020.

Já disse algumas vezes isso no Masto, mas entre 2017 e 2019 eu definitivamente passei mais tempo na Unirio do que em casa. Foi pelo privilégio de poder estudar de 13h até 22h que eu consegui me formar na graduação e me matricular no mestrado antes do começo da pandemia. Então voltar ao CCH depois de mais de 2 anos foi uma mistura de sentimentos.

Eu lembro como se fosse hoje do primeiro dia de aula. Estar em uma universidade pública, finalmente iniciando meu caminho para me tornar professor era um sonho de infância se realizando. Então eu cheguei de 107 bem assim na Urca:

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Estava eu trocando as costumeiras ideias com os amigos do fediverso, quando chegou a pergunta: “você já leu The Catedral and the Bazaar?” Não, nunca tinha ouvido falar. Como não estava fazendo nada de útil naquele quente Sábado carioca, fui correr atrás dessa leitura e não foi difícil encontrar o pdf (obrigado, internet! S2). O texto que segue é uma visão minha do artigo de Eric Raymond enquanto completo outsider da área, mas que pesquisa tecnologia em um contexto educacional.

Coloco também uma ressalva sobre mim que pode influenciar minha visão: sou traumatizado com textos de tecnologia dos anos 1990. Sim, é um trauma bobo, mas quando sua área ainda é fanática por Pierre Lévy, é o que acaba acontecendo. Junte aí Manuel Castells e Howard Rheingold: está feito o trauma tecnológico desse pedagogo que vos fala.

Vamos começar pelo começo, com esse trecho do prefácio de Bob Young bem simbólico do que nos espera:

“No (negócio) de hardware de computador, onde a liberdade reina tanto para fornecedores quanto para consumidores da mesma forma em escala global, a indústria gera a mais rápida inovação em produto e valor de consumidor que a indústria jamais viu.” (p. IX, Tradução minha)

Se você é xovem demais para pescar a referência, se trocar “negócio de hardware de computador” por qualquer outra coisa que tenha sido privatizada no mundo nos últimos 40 anos, se encaixa perfeitamente no discurso neoliberal feito para justificar. Se me dessem esse trecho sem autoria, eu não saberia responder se quem escreveu foi o FHC, o Paulo Guedes ou o CEO da Red Hat. Bom começo, esperava um texto comunista, talvez anarquista, e parei no panfleto da convenção do Partido Novo. Ah, oi, Amoedo, belo sapatênis esse seu. Comprou em New York, né? Imaginava.

Voltando para o texto de Raymond, a metáfora da Catedral e do Bazar pode parecer uma coisa bonita para um desavisado. A centralização da Catedral versus a decentralização do Bazar; a linearidade do primeiro, contra o caos do segundo; a verticalidade da catedral, contra a horizontalidade do bazar. Em pleno 2021, se você não abraçou o caos, foi o caos que abraçou você, falta talvez apenas notar, sinto lhe dizer. A escolha pelo bazar parece óbvia.

Lógico, o modelo catedral era utilizado tanto por softwares de código fechado quanto por alguns de código aberto. O principal entusiasta, talvez inventor, do modo bazar era Linus Torvalds, o criador do Linux. Aliás, parte considerável do espaço do artigo é dedicada a elogiar o finlandês. Linus, por ser preguiçoso, teria sido o precursor do modelo bazar, uma forma menos trabalhosa de conseguir um grande software.

Quando você procurei no DuckDuckGo por imagens relacionadas ao termo “bazar”, foram apresentadas imagens dos mercados orientais: Istambul, Marrocos, Índia... Lugares definitivamente mais animados que uma reunião de intelectuais religiosos em uma catedral. O problema é que quanto mais eu lia o texto de Raymond, mais minha cabeça formava a imagem do Barra Shopping. O bazar que o autor descrevia através de seus projetos era mais parecido com um shopping de madame do que com um mercado que mistura todos os tipos de pessoas.

Primeiro porque o autor diferencia o usuário de software livre como alguém geralmente mais capacitado tecnicamente. Ao longo de todo o texto, parece que a preocupação do desenvolvedor é encontrar e fidelizar parceiros de desenvolvimento que vão lhe dar dicas quentes para melhorar seu código ou corrigir bugs. O “usuário comum” pode ficar lá nas portas da catedral esperando o conselho de sábios lhes dar uma migalha. No bazar, parece ser bem vindo o cara que sabe ler código-fonte de programas, que sabe escovar uns bits para não apenas alertar o desenvolvedor do bug, mas já dar uma ideia de onde o bug está e o que faria para resolver. A lista de relato de erros parece mais um processo seletivo do que outra coisa. Se no Shopping das madames a roupa de grife e a conta bancária ajudam os vendedores a separar a elite da plebe, nesse bazar um diploma de tecnologia da informação ou a demonstração prática de conhecimento em programação parece dividir quem entra e quem não entra nesse mercado.

Tem muita da fantasia dos anos 1990 que o Erick Felinto aponta, uma visão religiosa da tecnologia. A internet era o novo paraíso, o computador a porta para o reino celeste e a linguagem de programação a língua dos anjos. A salvação era tecnológica, não bíblica. Mas talvez nós tenhamos sorte: os cristãos esperam o tal do paraíso faz uns 2000 anos, a gente tá esperando faz uns 30 anos mais ou menos. Estamos no lucro, vai?

O computador não é o portal do paraíso, a internet não nos levou ao paraíso, mas ajudou a trazer do esgoto da sociedade para a liderança das Instituições a extrema-direita. As linguagens de programação não se tornaram o novo idioma que une todos os povos do mundo, cada vez mais são dialetos usados por pequenos grupos, cada vez mais restritos, cada vez mais poderosos e com mais controle sobre nossas vidas. O software livre não virou o bazar, lar do caos e da cacofonia de milhões de vozes, mas a festa de socialite onde só se entra com convite.

O modelo defendido por Raymond é o do hobbie que vai ficando mais sério, se profissionalizando, reunindo mais iguais conforme fica mais famoso. É a expectativa de que o problema que te afeta, atinge mais gente e que tua solução para o problema é vista como relevante por outros. Isso não é um bazar e você não precisa ir a Istambul para perceber isso. Vá na feira do seu bairro essa semana, preste atenção nos rostos, nas vozes, nas roupas, que você vai ver que não se parece em nada com o que Raymond descreve e defende.

Enquanto o software livre se desenvolve nesses clubinhos, as multidões estão nas portas das Catedrais, cada vez menos confiantes em outras soluções, cada vez mais dependente da estrutura fornecida por essa elite. E as “sugestões superficiais” da plebe se tornam o combustível que torna a catedral cada vez maior, mais pomposa.

Desenvolvedores têm família, precisam comer e pagar boletos como qualquer mortal. Se os projetos grandes de software livre foram bem-sucedidos em se viabilizar economicamente, o mesmo não pode ser dito de tantas outras iniciativas importantes que se mantém como puro hobbie do desenvolvedor. E ninguém é jovem para sempre. Parece óbvio, mas nem sempre isso é levado em consideração. Um dia a energia do jovem para codar o dia todo e chegar em casa para codar ainda mais para seu passatempo tecnológico acaba.

Há décadas o marketshare do Linux, principal sistema operacional de código aberto, não passa dos 1%, por mais que melhore, por mais que seja aperfeiçoado e hoje seja muito mais prático do que há 20 anos atrás. Ainda acho que a metáfora do bazar, do bazar de verdade, seja a nossa melhor saída. Talvez não rir de iniciativas, como a do Ubuntu e do Mint, por exemplo, de se tornar mais agradável e fácil. Quem sabe a saída do 1% não more em receber clientes comuns, o cara que só quer entrar na sua barraca e comprar, que vai reclamar as vezes que sua manga tá feia sem precisar se preocupar em estudar a logística que você faz para comprar do produtor e vender ali, sem ser engenheiro agrônomo para te indicar que talvez a manga espada e não a manga rosa é a fruta da época.

Talvez a solução seja gostar mais de gente comum, que não vai te dar nada em troca e não apenas do carinha que vai te ajudar com a mão-de-obra gratuita. Ou você é o feirante ou a socialite. Dizer que é o primeiro, mas se comportar como a segunda não dá. Nunca deu.

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Aqui vão minhas experiências com a leitura da HQ “V.I.S.H.N.U.”, de Ronaldo Bressane e Eric Acher com ilustrações de Fábio Cobiaco. Comprei essa obra para continuar na minha tarefa de colocar um pouco de referências literárias na minha dissertação de mestrado.

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Desde a eleição de Bolsonaro a discussão a cada novo retrocesso proposto pelo governo é até onde estamos retrocedendo: alguns apostam no retorno ao clima da Ditadura Militar; outros falam em um retorno ao século XIX; outros ainda argumentam que estaríamos retornando à Idade Média. A proposta desse texto é indicar, com as limitações desse espaço, que ao menos em partes o último grupo tem alguma razão. Para isso utilizaremos a Media Ecology como base teórica.

Comecemos pelo princípio. No que é considerado o texto inaugural do campo de pesquisa, Postman (1970) definiu da seguinte forma a Media Ecology:

“A intenção [da Ecologia das Mídias] é estudar a interação entre pessoas e suas tecnologias de comunicação. Particularmente, a ecologia das mídias se concentra em como os meios de comunicação afetam a percepção, compreensão, sensação e valor humanos; e como nossas interações com os meios facilitam ou impedem nossas chances de sobrevivência. A palavra ecologia implica no estudo de ambientes: sua estrutura, conteúdo e impacto nas pessoas. Um ambiente é, afinal, um complexo sistema de mensagem que impõe aos humanos certas formas de pensar, sentir e agir. Ele estrutura o que podemos ver e dizer e, portanto, fazer. Ele nos designa papéis e insiste que os representemos. Ele especifica o que é permitido fazer e o que não é. Algumas vezes, como no caso de uma corte, uma sala de aula e um escritório, as especificações são explícitas e formais. No caso do ambiente midiático (por exemplo, livros, rádio, filme, televisão, etc.) essas especificações são mais implícitas e informais, escamoteadas sob nossas premissas de que não estamos lidando com um ambiente, mas meramente com uma máquina. A ecologia das mídias tenta tornar essas especificações explícitas. Ela tenta encontrar os papéis que os meios nos forçam a interpretar, como os meios estruturam o que nos estamos vendo, porque os meios fazem com que nos sintamos e atuemos da forma como fazemos.” (p. 161, tradução nossa)

A extensa definição de Postman por si só já merecia um texto de análise, mas isso fica para outro momento. Longe da separação em períodos históricos, a Ecologia das Mídias costuma dividir – tomando a experiência brancocêntrica como universal – uma divisão em ambientes midiáticos que levam o nome do meio principal daquele período. Assim, temos os ambientes midiáticos oral, quirográfico, tipográfico e eletrônico. Se saímos do ambiente eletrônico para o digital ainda é uma questão aberta no campo, com a resposta sendo sim ou não dependendo de quem você leia. (Strate, 2017)

Cada um desses ambientes não é completamente dominado por um único meio, mas existe uma relação caótica em entre meios, pessoas e ambiente, resultando na sociedade na qual esse ambiente está inserido. Exemplificando, o ambiente tipográfico não tinha apenas o impresso, mas permaneciam atuantes a oralidade e a quirografia, ao mesmo tempo atravessando o impresso e sendo por este atravessados.

Começando a trazer a discussão para o nosso quintal, o Brasil não teve um ambiente tipográfico completamente contemporâneo ao europeu. Enquanto a maquina de Gutemberg é inventada no século XV na Europa, já existindo muito antes em países asiáticos como Coréia e China, a primeira prensa de tipos móveis só chegou ao nosso país após a família Real Portuguesa, em 1808, no começo do século XIX. Juntando a isso a demora na disponibilização de educação escolar para todos, que só foi acontecer, e com muitos poréns, por volta do ano 2000, temos um país com um ambiente oral estendido, como raramente é visto até entre outros países colonizados na América Latina.

A oralidade é o domínio do audível, onde ritmo e rimas são meios utilizados garantir a memorização e passagem a diante do conhecimento dos povos. A oralidade, enquanto meio, requer a proximidade das pessoas, foco na ação e não na análise. Sem a agência do domínio visual, a palavra falada não tem edição, não tem conserto; o que se pode fazer é justificar e corrigir o que foi falado. (Ong, 2012)

Embora a passagem do ambiente oral para o quirográfico traga a externalização da memória para o pergaminho na forma de escritas pictográficas ou alfabéticas, por muito tempo o manuscrito é tratado como um registro da fala, sendo amplamente associado à oralidade, se libertando apenas com a fixação das letras e sua separação em espaços uniformes pela superfície do papel possibilitadas pela tipografia. (Idem)

Dito isso, vamos ao senhor presidente. Ele muitas vezes age como se estivesse no ambiente midiático oral, onde a palavra deixa de existir assim que sai da boca do orador, sendo difícil atribuição de autoria. Não são poucas as vezes em que ele desafia registros escritos e visuais para dizer que não disse o que havia dito. E muitas vezes fala, aparentemente, sem o registro escrito prévio, a análise e o planejamento que um habitante de um ecossistema tecnológico que já tem a tipografia entre suas espécies deveria ter.

Veja bem, não o estou chamando de analfabeto, até porque mesmo o analfabeto é atravessado ao longo de sua vida pelos desdobramentos de séculos de meios tipográficos agindo sobre nossa estrutura urbana e social. Como capitão – mesmo da reserva – do exército, pressupõe-se que ele tenha pleno domínio dos meios quirográficos.

Mas ainda prefere agir oralmente. Como na fala sobre a vacina. Antes de afirmar que a vacina não é de São Paulo, mas do Brasil, ele afirma que “(...) apesar da vacina... apesar, não, né? A Anvisa aprovou, não tem que discutir mais (...)”. Observa-se a ausência de qualquer análise e preparação prévia.

Referências

POSTMAN, Neil. The Reformed English Curriculum. In: ALVIN, Euric C. (Org.). High School 1980: The Shape of the Future in American Secondary Education. New York: Pitman Publish Corporation, 1970. p. 160–168.

STRATE, Lance. Media Ecology: An Approach to Understanding the Human Condition. New York: Peter Lang, 2017.

ONG, Walter. Orality and Literacy. The Tecnologizing of the Words. New York: Routledge, 2012.

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Autor: Lance Strate Tradução: Cleiton Lima Texto original: https://blogs.timesofisrael.com/extravagant-expectations/

Americanos sofrem de expectativas extravagantes. Esse foi o argumento de Daniel J. Boorstin em seu livro The Image, publicado pela primeira vez nos EUA em 1961. Professor de História na Universidade de Chicago nesse período, Boorstin foi indicado pelo Presidente Gerald Ford como 12º Bibliotecário do Congresso Norte-americano, ficando no cargo entre 1975 e 1987.

No caso de você estar se perguntando, não, o Bibliotecário do Congresso não verifica os livros ou coleta as multas por atrasos na devolução das obras. A posição é semelhante a de um poeta americano premiado; é, de fato, ser nomeado como o líder intelectual da nação.

O argumento de Boorstin foi que, “nós usamos nossas riquezas, nosso letramento, nossa tecnologia, e nosso progresso, para criar a moita de irrealidade que se coloca entre nós e os fatos da vida… para nos confundir e enevoar nossa experiência.” Ele explicou que “nós somos governados por expectativas extravagantes… em relação ao que o mundo possui… [e] de nosso poder de modelar o mundo.”

Boorstin acreditava que o problema estava enraizado em nossa habilidade de criar falsas realidades através de nossas mídias e tecnologias, e através de técnicas como publicidade e relações públicas. Consequentemente, nós permitimos que o “Sonho Americano” fosse eclipsado pelas “Ilusões Americanas”. Nós substituímos eventos reais por pseudo-eventos (termo criado por ele), heróis por celebridades, viagens por turismo, formas por sombras, ideais por imagens.

A crítica cultural conservadora de Boorstin vem a mente nesses dias porque nós estamos mais afundados na negação da realidade do que jamais estivemos. E isso não é mais aparente em outro lugar do que em nossa resposta à pandemia, a sua enorme ameaça à perda de vidas que ela ameaça e isso já aconteceu.

Ao redor do Estados Unidos, estudantes estão sendo enviados de volta para a escola apesar do fato que o vírus da COVID-19 é altamente contagioso e se encontra longe de estar sobre controle. Nós, de alguma forma, acreditamos que prédios, salas de aula, e dormitórios que nunca foram projetados para o distanciamento social, ou até para boa ventilação, e que escolas mal financiadas e com manutenção precária antes de tudo isso começar, de alguma forma se transformarão em ambientes seguros para o aprendizado presencial.

Nós de alguma forma acreditamos que crianças pequenas que foram mantidas em relativo isolamento nos últimos seis meses estarão imunes à doença uma vez que forem reunidas com seus pares, e que elas não levarão o vírus de volta para casa com elas, apesar da maneira que elas compartilham cada tosse, gripe, dor de garganta e resfriado com seus familiares.

Nós de alguma forma acreditamos que as crianças usarão máscaras e manterão o distanciamento entre si, quando nós não conseguimos convencer nem os adultos a fazê-lo.

Nós de alguma forma acreditamos que jovens não sucumbirão à pressão de seus pares. Que, uma vez expostos ou começando a manifestar os sintomas, as crianças admitirão livremente para seus pares sob o risco de serem marcados como se tivessem piolhos. Que crianças apenas não confiarão em seus amigos e colegas de classe quando disserem que estão ok, que não estão doentes, que não foram expostos ao vírus, que não são contagiosos.

Nós de alguma forma acreditamos que adolescentes e jovens irão contra sua natureza e se engajarão no distanciamento social e no limite de contato. Que eles não cederão ao desejo de contato social e recreativo. Um colega meu em uma universidade de outra área metropolitana de Nova Iorque, onde o plano é de reabrir para o semestre de outono, confidenciou que a faculdade tem um bolão de apostas para ver quem acerta quão cedo eles precisarão fechar novamente. Uma boa aposta diz que em poucas semanas.

Ao invés de encarar a realidade, e concentrar tempo, dinheiro e esforços em oferecer a melhor educação remota possível enquanto durar a crise, escolas da educação infantil até a universidade estão tentando proteger suas apostas com planos mal pensados de “flexibilização” e aprendizado “híbrido”. E eles estão colocando a responsabilidade nos professores para se prepararem para múltiplas contingências, para mudar e adaptar na hora, e incrivelmente, de alguma forma prevenir que o vírus se espalhe e se manterem saudáveis eles próprios – algo em que os profissionais da saúde em si não tiveram completo sucesso.

Há muito tempo nós depositamos os problemas sociais na escola, exigindo que ela lidasse com fatos como dependência e uso de drogas, gravidez na adolescência, abuso infantil, má nutrição/fome, e problemas mentais. Professores que são sistematicamente mal pagos, sobrecarregados, e desrespeitados são encarregados de resolver – ou melhor, obrigados a resolver – todos os problemas que famílias e comunidades têm abdicado de resolver. Por que não acrescentar mais obrigações?

Nossa negação da realidade em relação as nossas escolas está ligada ao desejo profundo de que as coisas voltem ao normal. Crianças precisam estar na escola para que pais possam voltar ao trabalho. Como se escritórios e locais de trabalho subitamente se tornassem seguros, ambientes livres de vírus. E que a doença não se espalharia com pessoas viajando para lá e para cá, muitas usando ônibus e trens.

Nós fantasiamos que de alguma forma a atividade econômica simplesmente será retomada, e que tudo será novamente como era. Que todos os empregos que foram perdidos de alguma forma ainda estarão lá. Que a recuperação será instantânea, em um estalar de dedos.

Nós acreditamos que de alguma forma podemos abrir nossos bares, e que sob a influência do álcool as pessoas continuarão se comportando com responsabilidade. Nós acreditamos que podemos retornar seguramente à jantares em locais fechados e entretenimento sem o medo de aumentar a taxa de infecção. Nós acreditamos que podemos ter eventos esportivos porque os atletas são especialmente fortes e saudáveis e por isso resistentes a doença. Coletivamente, nós estamos vivendo em um constante estado de negação.

Nós acreditamos que a cura será encontrada rapidamente e facilmente – apesar de nós ainda precisarmos encontrar a cura para o câncer, para a AIDS, para o autismo, e até para a gripe comum. Nós estamos sempre procurando pela pílula mágica, ou dose, ou cubo de açúcar. Nós esperamos resultados instantâneos, um fluxo constante de milagres, esquecendo quanto tempo e quão difícil foi encontrar vacinas para a pólio, varíola, e outras doenças. Ou quão limitada é a eficácia da vacina anual da gripe que nos é disponibilizada. E o pior tipo de irrealidade é a ridícula afirmação que o coronavírus de alguma forma, como em um passe de mágica, desaparecerá.

Expectativas extravagantes! Como explicar de outra forma a negação insana da realidade em face da pandemia? Nós nos agarramos às nossas ilusões e desilusões ao invés de admitirmos que devemos fazer sacrifícios agora, e por um longo período pela frente. Nós negamos a realidade ao invés de buscarmos a coragem e a visão para encarar os fatos e agirmos apropriadamente.

Expectativas extravagantes! De nossa capacidade de lidar com a mudança climática. Que de alguma forma, de alguma maneira, quando as coisas se tornarem realmente ruins, nós pensaremos em uma maneira de resolver o problema. Bem, não exatamente nós. Mas alguém. Nós negamos a realidade de que já é muito tarde para impedir, que tudo o que nós podemos fazer é tentar mitigar as consequências de nossos atos irresponsáveis.

Expectativas extravagantes! De que nós podemos cortar impostos e balancear o orçamento. De que nós podemos cortar impostos e consertar nossa infraestrutura decadente. De que nós podemos cortar impostos e oferecer serviços essenciais. De que nós podemos cortar impostos e oferecer cuidados médicos adequados para todos. De que nós podemos cortar impostos e manter a seguridade social. De que nós podemos cortar impostos e que isso não resultará nos ricos ficarem mais ricos e os pobres ainda mais pobres.

Expectativas extravagantes! De que nós podemos militarizar nossa polícia enquanto exigimos que ela haja com moderação e sensibilidade. De que nós podemos combater o terrorismo e manter as liberdades civis. De que nós podemos ter justiça sem reforma.

Expectativas extravagantes! De que a democracia é fácil, de que até funciona automaticamente. De que ela não necessita de esforços. De que ela não precisa de comprometimento. De que ela não vem com um preço.

Nossa nação precisa de uma liderança enraizada na realidade, não na fantasia e na realização de desejos. Tragicamente, nós temos um presidente que é uma celebridade, não um líder. Ele conquistou essa posição através de nenhuma qualificação e conquista além da habilidade com publicidade, e um personagem construído com a ajuda de Mark Burnett, produtor da versão norte-americana de “O Aprendiz”. Boorstin definiu a celebridade como “uma pessoa reconhecida por sua notoriedade,” alguém “fabricado com o propósito de satisfazer nossas expectativas exageradas de grandeza humana,” alguém que representa “uma nova categoria de vazio humano”.

Vazio humano. Isso é tudo que nos restará se continuarmos nos agarrando à nossas expectativas extravagantes. Se não dispersarmos a névoa de fantasia e ilusão que nos envolve. Se falharmos em reconhecer que sempre precisaremos nos ajustar e trabalhar com as restrições que nos são impostas pelo nosso ambiente. Que a verdadeira grandeza não vem da negação da realidade e do apego a imagem ao invés da matéria, mas da dedicação, do trabalho, e do sacrifício que é nos é requisitado em nosso tempo.

O “Sonho Americano” deu lugar ao “Pesadelo Americano”, e para despertar nós precisamos substituir nossas expectativas extravagantes com aspiração realísticas. E nós precisamos fazer isso agora.

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